quarta-feira, 27 de março de 2019

O exame nacional de Abraão

Há algumas ideias acerca de Deus com as quais não convivo confortavelmente, nomeadamente a de que Deus quer o sofrimento humano. Neste post, pretendo abordar de modo parcial essa questão, através de outra ideia "complicada" para mim, a de que Deus "testa" o ser humano, ou que "envia tribulações". Não me cabe na cabeça conjecturar esta noção de Deus. Podemos efectivamente negar que Deus queira o sofrimento, no entanto, a nossa vida, as nossas inseguranças, a nossa educação, as nossas ideias/concepções/teologias por vezes sugerem-nos que, nem que seja de modo ligeiro, Deus testa e envia o sofrimento. Obviamente não posso declarar-me como senhor da verdade acerca destas questões, mas seria excelente se pelo menos pudéssemos evitar raciocínios que desemboquem em afirmações como: "Deus permite o sofrimento porque sabe que podes aprender com ele", "Deus só te dá aquilo que consegues suportar" ou ainda "Deus dá as batalhas mais difíceis aos seus melhores soldados". Para que fique esclarecido, Deus não nos diz para nos esquivarmos ao sofrimento. Mas isso é bem diferente de achar que ele no-lo envia.
Isto é tudo muito cor de rosa, mas de tempos a tempos há uns coitados que, no meio dos "testes/tribulações/sofrimentos enviados por Deus", sei lá, na guerra, por exemplo, levam com um balázio de um tanque e vão desta para melhor. Ou alguém que luta contra um cancro. Será que nessas alturas podemos dizer então que Deus é uma mãe panda? (Para quem não sabe, as mães panda gostam tanto dos filhos que, ao abraçarem-nos com tanta força, acabam por matá-los.) Por favor...pensemos a fundo nas questões e recusemos as frases cliché usadas com leviandade, mesmo que elas possam apresentar um fundo de verdade. Esta cena do filme "Beleza Colateral" ilustra um pouco do que eu quero dizer. O protagonista perdeu a filha e está a falar com a Morte. Não consegui encontrar com legendas em português, mas a parte que importa é esta: "Deus olhou para baixo e viu uma rosa tão bonita que decidiu colhê-la para tê-la só para si no céu (...) Mas sabes que mais..são só tretas intelectuais, porque ela não está aqui a segurar a minha mão". Escusado será dizer que recomendo em absoluto o filme.

Uma das passagens da Bíblia que pode eventualmente contribuir para estas ideias acerca de Deus é a do sacrifício de Isaac (Gn 22, 1-18). Naturalmente não vou dar a(s) resposta(s) definitivas acerca deste episódio, mas espero poder mostrar algumas novas perspectivas que contribuam. Permitam-me umas notas preliminares, que são válidas daqui para a frente nestes posts. Faço assim já uma entrada a pés juntos, para alguns; para outros, um corte perfeito. Espero não lesionar ninguém. Quando dizemos que a Bíblia é a Palavra de Deus, há uma diferença entre dizer que é inspirada por Deus e dizer que todas as palavras sem tirar nem pôr saíram da boca de Deus. A relevação de Deus, a inspiração/sensação/intuição, está sujeita à personalidade/comportamento/entendimento/cultura dos chamados escritores sagrados. Isto para não falar depois de todas as questões de tradução e por aí fora, porque senão nunca mais daqui saímos. Mas atenção, tal não obsta a que se tenha a Bíblia em consideração como sendo a Palavra de Deus. Aliás, se este entendimento fosse problema, não teríamos todo um mundo à volta da exegese bíblica, nem malucos como eu a fazer blogs deste género. Far-se-ia uma espécie de quod scriptum, scriptum e pronto.
Ninguém é obrigado a concordar com este entendimento da Bíblia, mas um entendimento literal da Bíblia em toda e qualquer palavra coloca-nos questões pertinentes (e bem tramadas, para quem diz que Deus é amor) no que toca à natureza de Deus e do conceito de bem e de mal segundo o seu juízo. Num outro post, sobre o bem e o mal, abordarei estes problemas.

Vamos ao texto em questão (vou tentar apresentar algumas possíveis interpretações, algumas até contraditórias entre si). Nele, parece que Deus exige a morte do filho de Abraão. Pouco importa que fosse só um teste e que Deus não quisesse a morte de Isaac. Tal situação já seria inflingir dor psicológica em Abraão, e não estou a ver Deus ali a esfregar as mãos maquiavelicamente ao observar o dilema moral em que o ser humano se encontraria. Mas vamos ao texto.
Efectivamente, é-nos dito que Deus chamou Abraão para o testar, ou pôr à prova. Ora, nós dizemos que Deus é omnisciente, e quando se testa alguém, é porque não se sabe o resultado final. Mas se Deus conhece o coração de Abraão, não precisa de testar Abraão. Precisa é de lhe mostrar alguma coisa! Quase que se poderia ler "Deus, para fazer Abraão compreender (...)". Assim, o propósito de Deus seria mais o de revelar alguma coisa acerca de si e de Abraão a este último. Esta visão não retira o problema da dor psicológica sentida por Abraão, mas penso que pode mudar alguma coisa acerca da ideia de Deus. Uma conclusão importante a retirar é a de que Deus NÃO QUER o sofrimento humano, mesmo quando assim nos parece. Numa outra perspectiva, se pensarmos num teste formativo, o objectivo deste é ajudar no percurso de aprendizagem do aluno. No entanto, este teste gera inevitavelmente ansiedade no aluno, mesmo que não seja essa a intenção do professor. Não seremos nós, seres humanos, a percepcionar a situação como um teste, e não Deus?

Relembrando a entrada a pés juntos de há pouco, até que ponto é que Abraão percebeu bem o pedido de Deus? É que Abraão vivia numa região onde os outros deuses é que exigiam sacrifícios humanos. Deus, ao pedir-lhe que oferecesse o seu filho, pode ter levado Abraão a ter pensado com naturalidade que matar o filho era o tipo de sacrifício que Deus queria. Por outro lado, pode ter pensado "mas afinal este Deus é como o deus dos cananeus e quer isto? É curioso que, uns capítulos antes, Abraão põe-se a falar com Deus por causa da destruição de Sodoma. Nisto, argumenta com Deus para que este tenha em atenção a "verdadeira" justiça. E põe-se por ali a regatear com o próprio Deus, como se tivesse alguma palavra a dizer a Deus no que toca à noção de bem e de justiça, como se pudesse ensinar o próprio Deus. No entanto, quando se trata de matar o próprio filho, não consta do texto que tivesse argumentado.
Além do mais, se o entendimento de uma oferta a Deus era o de oferecer em holocausto, ou imolar, esse entendimento muda até chegarmos à percepção de que há uma diferença entre o sacrifício que Deus quer, e o sacrifício que nos achamos que Deus quer. Em todo o caso, Abraão lá partiu como se fosse para matar o filho. No momento de imolar o filho, aparece o anjo que lhe diz: "não estendas a tua mão sobre o rapaz, e não lhe faças nada, pois agora sei que temes a Deus". Seja o anjo uma criatura com asas, um mensageiro (um mensageiro traz uma mensagem) de Deus, visível ou invisível, o que é certo é que Abraão percebeu que não tinha de matar o filho. Aliás, é provável que durante o caminho Abraão tivesse pelo menos essa esperança, quando diz aos criados: "eu e o meu filho iremos até ali, e depois de adorar, voltaremos para vós". Por um lado queria ser fiel a Deus, por outro lado acreditar ser possível ficar com o seu filho.

Li um artigo, de origem judaica, com outra interpretação interessante. A ideia é a de que o teste de Deus fosse ao pensamento crítico de Abraão. Deus quereria que Abraão pudesse confrontar a sua noção de bem e de mal com a noção de bem e de mal de acordo com Deus (ora pelo que ia descobrindo acerca de Deus, ora pela ideia de Deus que tinha por influência das outras religiões). Se há coisa que observamos na história da salvação, é que Deus constrói com as imperfeições e limitações dos seres humanos. Poderia dizer "vocês não percebem nada disto, eu não quero cá sacrifícios de animais nem tretas do género. Orientem-se", mas em vez disso, aceita o desenvolvimento da moral do ser humano progressivamente, do mesmo modo que se vai progressivamente relevando. Seja o resultado do teste o esperado ou o inesperado, Deus diz a Abraão que o vai abençoar e à sua descendência, como aliás já havia prometido, porque Abraão "obedeceu à sua voz" e "não negou o seu filho", o que parece indicar que o teste de Deus era "a sério". Por outro lado, é interessante confrontar as palavras do anjo "agora sei que temes a Deus", com as palavras de S, João: "No amor não há temor; pelo contrário, o perfeito amor lança fora o temor; de facto, o temor pressupõe castigo, e quem teme não é perfeito no amor." Sim, não precisam de me dizer, temor e medo (como se traduz por vezes a segunda passagem) não são a mesma coisa, mas nem por isso estão assim tão distantes. Até que ponto podemos dizer que Abraão tinha respeito por Deus, mas Deus queria algo mais?

Resta-me um paralelismo final: Deus não deixa que Abraão sacrifice Isaac. Não quer que um pai sacrifice um filho, pois sabe bem o tipo de ligação existente entre os dois. Mais à frente na "história", aquilo que não exigiu ao ser humano que fizesse "por ele" (salvo seja), fará ele por nós. É o Deus Pai que envia o Deus Filho aos seres humanos. Não para se deter na morte, mas para viver até à morte, e para lá dela.

Isaac pode não ter sido sacrificado fisicamente, mas ainda assim foi oferecido a Deus. Não quererá Deus, em vez de nos testar, ensinar-nos e dar-nos a oportunidade de o procurarmos, o que implica também articularmos a noção de Deus e a noção de bem?

João Barreiro

quinta-feira, 21 de março de 2019

"Senhor, ensina-nos a orar"

Como o tempo não chega para tudo, aproveitei o que preparei para a oração que se costuma realizar de 15 em 15 dias, com a malta dos Convívios Fraternos.
Aqui vai:

"Senhor, ensina-nos a orar"


Porque é que rezamos? Por vezes pode parecer fácil responder a esta pergunta, especialmente para pessoas crentes, mesmo que a resposta possa variar conforme a pessoa. "Porque sim", "porque faz parte", "porque me ajuda", "porque quero falar com Deus", e tantas outras. Outras vezes, não encontramos resposta, porque não encontramos fundamento para rezar. Muitas vezes pensamos que deveríamos ter sempre essa resposta na "ponta da língua", como se fosse um autocolante que provasse a nossa crença. Tomemos o exemplo dos discípulos. Certamente estavam mais que habituados na sua cultura judaica a rezar. No entanto, viram em Jesus algo de diferente e importante quando ele rezava. Valia a pena admitir que não eram experts na matéria, e pedir-lhe que os ensinasse a rezar.

Do Evangelho de São Lucas:
"Estava Jesus em certo lugar orando e, quando acabou, disse-lhe um dos seus discípulos: Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos. Ao que ele lhes disse: Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; dá-nos cada dia o nosso pão quotidiano; e perdoa-nos os nossos pecados, pois também nós perdoamos a todo aquele que nos deve; e não nos deixes entrar em tentação." (Lc 11, 1-4)


A versão do Pai Nosso que costumamos rezar encontra-se no Evangelho segundo São Mateus (Mt 6, 9-13). É extremamente interessante notar que parte dos "pedidos" contidos nesta oração são também constatações acerca da realidade de Deus cuja responsabilidade é nossa. Do mesmo modo, Jesus diz-nos para pedirmos ao Pai que nos perdoe, porque nós também perdoamos. Ou seja, pedir com humildade, mas com a consciência de que tentamos viver na lógica do perdão. Não devemos entender o Pai Nosso como uma lista de pedidos enfadonha. Antes de ensinar os discípulos, Jesus diz-lhes que rezar não consiste em repetir a mesma coisa como se só por causa disso fossem ouvidos. Esta advertência de Jesus pode ajudar-nos a rezar nos dias de hoje. Não é que não possamos repetir palavras, mas devemos perceber com que intuito é que o fazemos. No meio dessas advertências vem outra: o propósito de rezar não deve ser o de ser admirado pelos outros, mas sim o de se recolher "no seu quarto", isto é, no seu coração, e rezar humildemente. Ao ensiná-los a rezar, Jesus ensina-os também algo sobre como viver, pois estas recomendações sobre a oração encontram-se no meio de recomendações sobre a esmola e o jejum. Rezar, então, não é algo desligado da vida, mas faz parte dela.


Do Evangelho de São Marcos:
Chegaram a uma propriedade chamada Getsémani, e Jesus disse aos discípulos: "Ficai aqui enquanto Eu vou orar."Tomando consigo Pedro, Tiago e João, começou a sentir pavor e a angustiar-se. E disse-lhes: "A minha alma está numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai." Adiantando-se um pouco, caiu por terra e orou para que, se possível, passasse dele aquela hora. E dizia: "Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres." Depois, foi ter com os discípulos, encontrou-os a dormir e disse a Pedro: "Simão, dormes? Nem uma hora pudeste vigiar! Vigiai e orai, para não cederdes à tentação; o espírito está cheio de ardor, mas a carne é débil."

Num momento extremamente delicado da sua vida, Jesus vai para um local isolado para rezar. Apesar de procurar estar sozinho para rezar, leva os seus amigos com ele, e confidencia-lhes o que lhe vai no íntimo. Pede-lhes inclusive, que fiquem ali com ele, que vigiem e que rezem também. Jesus precisa do auxílio dos seus amigos.

Música: Bleibet hier (Permanece junto de mim; ora e vigia.)

Muitas vezes não nos apetece rezar. Não temos vontade de rezar. Jesus pede-nos para rezar, mas sabe que a nossa determinação vale o que vale, como podemos ver pela passagem do Evangelho de São Marcos. No entanto, apesar de conhecer a fraqueza dos discípulos, pediu-lhes que ficassem com ele e que rezassem.


Não nos acusemos demasiado se não conseguimos rezar. É verdade que por vezes não queremos mesmo rezar, queremos estar virados para outro lado, e não queremos confrontar-nos nem com Deus nem connosco próprios.  Talvez seja importante percebermos porquê. Muitas vezes a vida dificulta-nos essa tarefa. Quem sabe, podemos nesses momentos juntarmo-nos com os nossos amigos, para brincar, para conversar, para partilhar. Talvez encontremos motivos para rezar, para agradecer a Deus ou para pedir algo a Deus. É também por isto que precisamos de viver em Igreja, pois precisamos de mostrar uns aos outros: "Não estás sozinho. Tens amigos a passar por dificuldades, outros em bons momentos, outros ainda a aprender algumas coisas e outros a ensinar outras. Mas são filhos de Deus, e portanto, são teus irmãos."
No entanto, por vezes parece permanecer um vazio, restando-nos muitas vezes aquilo que parece ser muito pouco. O irmão Roger, de Taizé, costumava dizer que "o desejo de Deus já é oração". Rezar começa com algo muito simples, uma leitura, uma reflexão, uma música, uma partilha. No meio de todas estas coisas, devemos, no entanto, parar e relembrarmo-nos de Deus. Essa é a condição fundamental. Pararmos, nem que seja por dois segundos, para "ouvir o silêncio", como se costuma dizer.
Poderemos, no meio das nossas inseguranças e incertezas, parar, relembrarmo-nos do Deus que nos ama, e percebermos que esse "desejo de Deus" que está presente em nós nos faz querer rezar, mesmo quando parece pouco?

Música: Behüte mich Gott (Cuida de mim, ó Deus, pois eu confio em Ti. Tu ensinas-me o caminho da vida. Contigo há alegria em plenitude.)

Música: Bonum est confidere (É bom confiar e esperar no Senhor.)

quarta-feira, 13 de março de 2019

"O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir"

Este post (o primeiro a sério!) é sobre missão/serviço. Encontramo-nos este ano, enquanto Igreja Católica, no Ano Missionário. Para esse efeito, parece que o título da Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa é: "Todos, Tudo e Sempre em Missão". É por aqui que quero começar.
O título deste post, retirado do Evangelho de Marcos, ou do de Mateus, não aparece exactamente assim, dependendo das traduções e versões da Bíblia. Apesar de achar que fica melhor assim enquanto título, há várias traduções em que está escrito: "Pois nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir (...)". Ou seja, nem sequer Jesus. Nem sequer Deus. Quanto mais nós, não é?
Percebo a existência do Ano Missionário, do Mês Missionário, da Pastoral Missionária, e por aí fora. E tenho um carinho especial pela Missão na sua acepção comum. Durante 4 anos fiz parte de um grupo de jovens dos Missionários Combonianos, e foi uma experiência excelente. Mas pergunto-me se não precisamos de subir a parada? Perceber que o que temos a fazer (seja lá o que isso for), não é só para alguns (todos), não é só sobre algumas áreas da sociedade (tudo), nem é só durante algum tempo (sempre). De igual modo, nem o Dia Internacional da Mulher nem o "Black History Month" chegarão para resolver os seus respectivos problemas.

Por vezes temos a ideia de que servir coloca-nos em segundo plano, retira-nos dignidade, sujeita-nos ao poder do outro. A própria palavra remete-nos para um servo, um escravo (e na Bíblia aparece inclusive nesses termos). Ora, não esquecendo de pesar aqui o peso metafórico de tal linguagem, para que serve um servo ou um escravo, para que serve servir? (a própria língua está a dar o seu contributo hahaha) Servir significa prover às necessidades de outra pessoa. Ajudar os outros. Partilhar com os outros. Em última análise, viver para os outros, viver dos outros, viver com os outros. O filme "A vida é bela" tem uma tirada absolutamente genial a este respeito. O protagonista, Guido, vai trabalhar para o restaurante do seu tio e, numa cena absolutamente cómica, em que está a aprender a servir às mesas, curva-se demasiado. Eliseo (o tio) interrompe-o e diz: "Vê os girassóis, curvam-se perante o sol. Mas se vês um demasiado curvado, significa que está morto! Tu estás a servir, mas não és um servo. Servir é a arte suprema. Deus é o primeiro servo. Deus serve os homens, mas não é servo deles!!" Se nunca viram este filme, peço-vos que o vejam. É um retrato exemplar da declaração de Jesus: "Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos"


Quando Jesus diz "nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir", "o maior de entre vós será o vosso servo", ou "quem de entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo", indica que viver assim não é algo secundário, uma tarefa extra à qual temos de nos sujeitar. Ao contrário, servir faz parte da essência do próprio Criador. Antes da Última Ceia, Jesus lava os pés aos que estavam com ele. Nos tempos antigos, lavar os pés de alguém era, conforme as culturas, trabalho para um escravo. Mas podia ser visto como um sinal de grande amizade e honra, bem como um ritual religioso de limpeza, ou simplesmente um gesto de acolhimento (tal como Abraão ao acolher "os três homens" na sua tenda). Logo depois disto, declara: "Vós me chamais de Mestre e Senhor, e com razão, pois é o que sou. Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Na verdade, na verdade vos digo que nenhum servo é maior que o seu senhor, nem o mensageiro maior que aquele que o enviou". Por um lado, Jesus serve os seus discípulos. Depois, diz que é Senhor dos seus discípulos. Por fim afirma que o servo não é maior que o seu senhor. O Senhor é Senhor na medida em que é servo, e o servo torna-se Senhor por ser servo. Não estará Jesus a dizer-nos para abandonarmos as nossas ideias e tentativas de sermos "superiores", para optarmos por outra lógica? Não é a primeira vez que Jesus gosta de trocar as voltas ao pessoal. Nem será a última.

Durante o tempo em que fiz parte do grupo de jovens dos combonianos, apercebi-me que ajudar é ajudar. Não podemos (infelizmente, a nível histórico, deveria dizer "não devemos") evangelizar à procura da conversão teórica de uma outra pessoa, quando não estou atento à sua situação de vida, às suas dificuldades económicas/sociais/familiares (mais tarde farei um post sobre a ideia de pedir auxílio a Deus para esta ou aquela situação, própria ou alheia). É aqui que vivemos. Aqui. Onde precisamos de dormir, de comer, de ir à casa de banho, de brincar, de ter amigos, de rezar, de procurar, de questionar, de duvidar, de amar.
Com Platão e Gnose em doses excessivas, acentuou-se a clivagem entre matéria e energia, carne e espírito, terra e céu, já presente nos escritos de Paulo, mas talvez levado a uma ideia menos desejada do que a pretendida, devido ao entendimento posterior dessas declarações. Nem só orar e louvar é do espírito, nem só empanturrar-me é da carne.

Quando estava a estudar em Évora, ia de vez em quando à missa durante a semana, numa capela lateral da Igreja do Espírito Santo. Não tínhamos CUPAV, mas havia missas nos dias de semana, e orações/"conferências" regularmente. O padre (jesuíta), antes da comunhão, dizia sempre "o Corpo e o Sangue de Cristo aumente em nós a vida eterna", onde normalmente se diz "nos guarde para a vida eterna". A certa altura perguntei-lhe o porquê, e ele disse-me que a vida eterna era uma questão de qualidade e não de quantidade (temporal). Uma vez mais, é aqui que vivemos. É aqui que podemos melhorar as coisas. É aqui que podemos começar/criar/recriar/ir criando o céu, o Reino de Deus. Não se trata de pensar que não existe vida para além da morte, que não existe o Céu, mas se acreditamos num Deus de amor, isso não pode dizer respeito apenas à vida depois da morte. As palavras em inglês podem ajudar-nos a destrinçar (mas não se queira destrinçar totalmente) esta dicotomia - life e afterlife. Por causa da ressurreição, da vida depois da morte (e já agora, antes da morte!), Jesus acabou por dizer a quem o questionava: "Não é um Deus de mortos, é um Deus de vivos. Andais muito enganados". Ou, na parábola do Bom Pastor, uma frase tão simples que recusa teologias complicadas mas oferece alegria : "Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância."
Uma coisa é "viver do Espírito" (Jo 3, 5-8). A "vida depois da morte"...é depois da morte.

"Vós sois o sal da terra"
O sal como tempero - Permitam-me um tom jocoso. Seguindo este entendimento desta expressão, revelo algumas semelhanças com Jesus. Gosto muito de comer e beber, mas não sou grande cozinheiro. Se Jesus fosse bom cozinheiro, talvez soubesse que sal a mais não era garantia de estrela Michelin. Aliás, se Jesus tivesse dito isto nos tempos que correm, teria os cardiologistas à perna!
Por outro lado, talvez Jesus até soubesse bem estes fundamentos rudimentares da culinária, e quereria dizer que os cristãos nunca seriam em número demasiado (demasiado sal), bem como dizer que sempre haveria trabalho para fazer.
O sal como conservante - Naquela altura não se podia ir ali ao supermercado e comprar uma arca congeladora e, como todos sabemos, o sal era usado para conservar a comida. Quando Jesus diz: "Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens", não estará a querer dizer: "Vocês estão aqui para preservar este mundo, para não o deixar entregue aos disparates dos homens, para ser esperança de felicidade para a humanidade. Se não for para isto, o vosso propósito perde-se."

Se, enquanto Igreja(s) e enquanto cristãos, não estamos aqui para ser "sal da terra", através da amizade, da cooperação, da contemplação, da espiritualidade, da política, da economia, do serviço, da ciência, da arte, do lazer, então estamos aqui para quê?

João Barreiro

quarta-feira, 6 de março de 2019

"Arrependei-vos e acreditai no Evangelho"

Caros leitores (se é que aí estão), eis chegada a hora! O tempo de Deus (como diz no Evangelho de Marcos, donde vem também o título deste primeiro post), já que começa a Quaresma, e também o tempo de começar este blog (já não era sem tempo, ufa!)
Desde já deixem-me dizer antes de mais nada, para este post e para os que se seguirem, não sou um conhecedor digno de filosofia e teologia. Sei muito pouco, mas quem sabe se não chegará para muito. Portanto, quero começar por dizer isto, para aqueles que ainda não sabem. Normalmente, associamos a palavra arrependimento a algo negativo, ao passado, ao pecado que cometemos, a qualquer coisa menos boa da nossa vida. Esta palavra é traduzida do grego "metanoia", que pode querer significar arrependimento no sentido mais corrente da palavra, mas significa principalmente mudança de pensamento, de mentalidade. Compreender que existe outra possibilidade de vida. Um futuro.
Talvez seja essa a primeira Boa Nova do Evangelho: "Mudai de pensamento e acreditai na Boa Nova. Deus (afinal) não é mau. Deus é bom!"

Por aqui talvez se perceba o título do blog, que, longe de ser catchy, foi o possível. Porque, efectivamente, importa pensar e re-pensar. Sob a mesma luz de outros, ou sob outra luz. Da mesma perspectiva, ou de perspectivas diferentes. Para chegar a conclusões iguais, nalgumas coisas, e a conclusões diferentes, noutras. E (e aqui é que é importante), para chegar a formulações diferentes que, não obstante, apontem na direcção do mesmo Deus de amor.
Muitas vezes achamos (individualmente, e enquanto Igreja), que é melhor não pensar, não questionar, não debater, não ter espírito crítico. Pode acontecer que nos afastemos, pensamos. Sim, é um risco. No entanto, sem pensar, não nos afastamos, mas também não nos aproximamos! Não melhoramos a Igreja. Não melhoramos o mundo.

Porque é que escolhi as duas frases no subtítulo do blog? A primeira, de Santo Agostinho, é uma frase que já conheço há muitos anos, e sempre a achei importante. Mostra a relação da crença e da reflexão acerca dessa mesma crença. Uma alimenta a outra, mas primeiro, preciso de ter a humildade de acreditar. "Ousar acreditar", como diz o irmão Alois, de Taizé. Esta premissa necessária não é exclusiva da fé cristã. As outras religiões também a têm, e até a investigação científica precisa de partir de algum conhecimento prévio aceite como verdadeiro para poder construir em cima dele. Sobre Agostinho, cabe aqui dizer que antes de se converter ao cristianismo tinha sido maniqueísta. Há sempre, em maior ou menor grau, influência de outras culturas e crenças no nosso pensamento. Isso não é necessariamente mau, mas significa que podemos e devemos olhar para a mesma coisa de perspectivas diferentes (como é o caso do pensamento filósofo grego e da sua influência no pensamento cristão)
A segunda frase, de Martinho Lutero, é fruto da sua luta contra o que considerava errado na Igreja Católica, que culminou com a sua ruptura com esta. Lutero, que era sacerdote católico, teve de lutar contra si próprio. Parte da sua consciência teve de lutar contra a outra parte, o que se pode imaginar como não sendo muito fácil, não é? Por um lado, fazer parte da Igreja, enquanto comunidade dos filhos de Deus. Ao mesmo tempo, compreender a decadência dessa comunidade. A guerra interior entre a noção de Deus, e o efeito prático dessa noção, visível (para o bem e para o mal) através da Igreja.
Eis as suas palavras: "A menos que eu seja convencido com a Escritura e com claros raciocínios (pois eu não aceito a autoridade de papas e concílios que se contradisseram uns aos outros), a minha consciência está vinculada à Palavra de Deus. Não posso e não quero me retratar de nada, porque não é justo nem salutar ir contra a consciência. Aqui estou. Não posso fazer de outro modo. Que Deus me ajude".
Curioso é que escolhi estes dois personagens sem os ter ligado um ao outro, mas fui procurar qualquer coisa (enquanto estava a escrever este post) e descobri que Lutero era monge agostiniano! (e esta, hã?)
Volvidos alguns séculos, já se admitiu a importância e a razão de Lutero. O próprio Papa Bento XVI, quando ainda era cardeal, disse que se deve obedecer à própria consciência, que está acima até do papa. Não me mandem já para a fogueira (esperem ao menos pelo próximo inverno para me aquecer um bocadinho). Claro que é importante atender às circunstâncias/contextos em que uma coisa é dita (se não estávamos tramados ao ler a Bíblia). Precisamos de ter a humildade para perceber que não sabemos tudo, e que já muitas pessoas pensaram e reflectiram acerca disto e muito mais, antes de nós. Mas temos de ter a noção de que sabemos alguma coisa. Na ânsia de lutarmos contra o relativismo, por termos medo de que isso possa dispersar e confundir as pessoas, acabamos por cair em absolutismos. Nenhum desses "ismos" é bom.

Ora, que é que podemos encontrar neste blog? Nem tudo, nem nada.
Comentários acerca de textos bíblicos;
pensamentos;
pequenas contribuições/novas abordagens que possam ilustrar de um ou outro modo algumas ideias ou frases cristãs.
Partilhas na área da música/literatura/cinema que possam contribuir de igual modo.
Frases que dêem para pensar.
Aquilo que me der na telha escrever.

Irei falar de coisas que estão mais que batidas, mas como já disse, é sempre preciso voltar a pensar sobre algo, quer se chegue à mesma conclusão, quer se chegue a outras.
Irei também, inevitavelmente, falar de temas controversos e delicados. Não o quero fazer com o intuito de dizer mal por dizer, embora às vezes possa utilizar algum humor que possa ser visto como mordaz ou sarcástico. Por vezes precisamos do humor para perceber o ridículo da situação. O meu objectivo é melhorar a Igreja, pois quem acha que está tudo a funcionar bem, pode tirar a cabeça da areia; é-vos permitido.

A ideia inicial era escrever no facebook (onde irei colocar links destes posts), mas ao menos assim a informação fica junta no mesmo local. São livres de comentar/criticar/partilhar/sugerir ideias para novos posts. Quem sabe, talvez no futuro outras pessoas contribuirão para repensar o pensamento cristão.

Let the games begin!

João Barreiro