quarta-feira, 13 de março de 2019

"O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir"

Este post (o primeiro a sério!) é sobre missão/serviço. Encontramo-nos este ano, enquanto Igreja Católica, no Ano Missionário. Para esse efeito, parece que o título da Nota Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa é: "Todos, Tudo e Sempre em Missão". É por aqui que quero começar.
O título deste post, retirado do Evangelho de Marcos, ou do de Mateus, não aparece exactamente assim, dependendo das traduções e versões da Bíblia. Apesar de achar que fica melhor assim enquanto título, há várias traduções em que está escrito: "Pois nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir (...)". Ou seja, nem sequer Jesus. Nem sequer Deus. Quanto mais nós, não é?
Percebo a existência do Ano Missionário, do Mês Missionário, da Pastoral Missionária, e por aí fora. E tenho um carinho especial pela Missão na sua acepção comum. Durante 4 anos fiz parte de um grupo de jovens dos Missionários Combonianos, e foi uma experiência excelente. Mas pergunto-me se não precisamos de subir a parada? Perceber que o que temos a fazer (seja lá o que isso for), não é só para alguns (todos), não é só sobre algumas áreas da sociedade (tudo), nem é só durante algum tempo (sempre). De igual modo, nem o Dia Internacional da Mulher nem o "Black History Month" chegarão para resolver os seus respectivos problemas.

Por vezes temos a ideia de que servir coloca-nos em segundo plano, retira-nos dignidade, sujeita-nos ao poder do outro. A própria palavra remete-nos para um servo, um escravo (e na Bíblia aparece inclusive nesses termos). Ora, não esquecendo de pesar aqui o peso metafórico de tal linguagem, para que serve um servo ou um escravo, para que serve servir? (a própria língua está a dar o seu contributo hahaha) Servir significa prover às necessidades de outra pessoa. Ajudar os outros. Partilhar com os outros. Em última análise, viver para os outros, viver dos outros, viver com os outros. O filme "A vida é bela" tem uma tirada absolutamente genial a este respeito. O protagonista, Guido, vai trabalhar para o restaurante do seu tio e, numa cena absolutamente cómica, em que está a aprender a servir às mesas, curva-se demasiado. Eliseo (o tio) interrompe-o e diz: "Vê os girassóis, curvam-se perante o sol. Mas se vês um demasiado curvado, significa que está morto! Tu estás a servir, mas não és um servo. Servir é a arte suprema. Deus é o primeiro servo. Deus serve os homens, mas não é servo deles!!" Se nunca viram este filme, peço-vos que o vejam. É um retrato exemplar da declaração de Jesus: "Não há maior amor do que dar a vida pelos amigos"


Quando Jesus diz "nem mesmo o Filho do Homem veio para ser servido, mas para servir", "o maior de entre vós será o vosso servo", ou "quem de entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo", indica que viver assim não é algo secundário, uma tarefa extra à qual temos de nos sujeitar. Ao contrário, servir faz parte da essência do próprio Criador. Antes da Última Ceia, Jesus lava os pés aos que estavam com ele. Nos tempos antigos, lavar os pés de alguém era, conforme as culturas, trabalho para um escravo. Mas podia ser visto como um sinal de grande amizade e honra, bem como um ritual religioso de limpeza, ou simplesmente um gesto de acolhimento (tal como Abraão ao acolher "os três homens" na sua tenda). Logo depois disto, declara: "Vós me chamais de Mestre e Senhor, e com razão, pois é o que sou. Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Na verdade, na verdade vos digo que nenhum servo é maior que o seu senhor, nem o mensageiro maior que aquele que o enviou". Por um lado, Jesus serve os seus discípulos. Depois, diz que é Senhor dos seus discípulos. Por fim afirma que o servo não é maior que o seu senhor. O Senhor é Senhor na medida em que é servo, e o servo torna-se Senhor por ser servo. Não estará Jesus a dizer-nos para abandonarmos as nossas ideias e tentativas de sermos "superiores", para optarmos por outra lógica? Não é a primeira vez que Jesus gosta de trocar as voltas ao pessoal. Nem será a última.

Durante o tempo em que fiz parte do grupo de jovens dos combonianos, apercebi-me que ajudar é ajudar. Não podemos (infelizmente, a nível histórico, deveria dizer "não devemos") evangelizar à procura da conversão teórica de uma outra pessoa, quando não estou atento à sua situação de vida, às suas dificuldades económicas/sociais/familiares (mais tarde farei um post sobre a ideia de pedir auxílio a Deus para esta ou aquela situação, própria ou alheia). É aqui que vivemos. Aqui. Onde precisamos de dormir, de comer, de ir à casa de banho, de brincar, de ter amigos, de rezar, de procurar, de questionar, de duvidar, de amar.
Com Platão e Gnose em doses excessivas, acentuou-se a clivagem entre matéria e energia, carne e espírito, terra e céu, já presente nos escritos de Paulo, mas talvez levado a uma ideia menos desejada do que a pretendida, devido ao entendimento posterior dessas declarações. Nem só orar e louvar é do espírito, nem só empanturrar-me é da carne.

Quando estava a estudar em Évora, ia de vez em quando à missa durante a semana, numa capela lateral da Igreja do Espírito Santo. Não tínhamos CUPAV, mas havia missas nos dias de semana, e orações/"conferências" regularmente. O padre (jesuíta), antes da comunhão, dizia sempre "o Corpo e o Sangue de Cristo aumente em nós a vida eterna", onde normalmente se diz "nos guarde para a vida eterna". A certa altura perguntei-lhe o porquê, e ele disse-me que a vida eterna era uma questão de qualidade e não de quantidade (temporal). Uma vez mais, é aqui que vivemos. É aqui que podemos melhorar as coisas. É aqui que podemos começar/criar/recriar/ir criando o céu, o Reino de Deus. Não se trata de pensar que não existe vida para além da morte, que não existe o Céu, mas se acreditamos num Deus de amor, isso não pode dizer respeito apenas à vida depois da morte. As palavras em inglês podem ajudar-nos a destrinçar (mas não se queira destrinçar totalmente) esta dicotomia - life e afterlife. Por causa da ressurreição, da vida depois da morte (e já agora, antes da morte!), Jesus acabou por dizer a quem o questionava: "Não é um Deus de mortos, é um Deus de vivos. Andais muito enganados". Ou, na parábola do Bom Pastor, uma frase tão simples que recusa teologias complicadas mas oferece alegria : "Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância."
Uma coisa é "viver do Espírito" (Jo 3, 5-8). A "vida depois da morte"...é depois da morte.

"Vós sois o sal da terra"
O sal como tempero - Permitam-me um tom jocoso. Seguindo este entendimento desta expressão, revelo algumas semelhanças com Jesus. Gosto muito de comer e beber, mas não sou grande cozinheiro. Se Jesus fosse bom cozinheiro, talvez soubesse que sal a mais não era garantia de estrela Michelin. Aliás, se Jesus tivesse dito isto nos tempos que correm, teria os cardiologistas à perna!
Por outro lado, talvez Jesus até soubesse bem estes fundamentos rudimentares da culinária, e quereria dizer que os cristãos nunca seriam em número demasiado (demasiado sal), bem como dizer que sempre haveria trabalho para fazer.
O sal como conservante - Naquela altura não se podia ir ali ao supermercado e comprar uma arca congeladora e, como todos sabemos, o sal era usado para conservar a comida. Quando Jesus diz: "Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há-de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens", não estará a querer dizer: "Vocês estão aqui para preservar este mundo, para não o deixar entregue aos disparates dos homens, para ser esperança de felicidade para a humanidade. Se não for para isto, o vosso propósito perde-se."

Se, enquanto Igreja(s) e enquanto cristãos, não estamos aqui para ser "sal da terra", através da amizade, da cooperação, da contemplação, da espiritualidade, da política, da economia, do serviço, da ciência, da arte, do lazer, então estamos aqui para quê?

João Barreiro

1 comentário:

  1. Servir para sermos felizes: dar voz, ouvindo, dar vista, mostrando as obras, alimentar, vestir, visitar; servir de forma organizada, com o Senhor como início e fim desse movimento não implica perda de liberdade e autonomia, quando feito com os outros. Continua! (Nuno Fernandes)

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