quarta-feira, 27 de março de 2019

O exame nacional de Abraão

Há algumas ideias acerca de Deus com as quais não convivo confortavelmente, nomeadamente a de que Deus quer o sofrimento humano. Neste post, pretendo abordar de modo parcial essa questão, através de outra ideia "complicada" para mim, a de que Deus "testa" o ser humano, ou que "envia tribulações". Não me cabe na cabeça conjecturar esta noção de Deus. Podemos efectivamente negar que Deus queira o sofrimento, no entanto, a nossa vida, as nossas inseguranças, a nossa educação, as nossas ideias/concepções/teologias por vezes sugerem-nos que, nem que seja de modo ligeiro, Deus testa e envia o sofrimento. Obviamente não posso declarar-me como senhor da verdade acerca destas questões, mas seria excelente se pelo menos pudéssemos evitar raciocínios que desemboquem em afirmações como: "Deus permite o sofrimento porque sabe que podes aprender com ele", "Deus só te dá aquilo que consegues suportar" ou ainda "Deus dá as batalhas mais difíceis aos seus melhores soldados". Para que fique esclarecido, Deus não nos diz para nos esquivarmos ao sofrimento. Mas isso é bem diferente de achar que ele no-lo envia.
Isto é tudo muito cor de rosa, mas de tempos a tempos há uns coitados que, no meio dos "testes/tribulações/sofrimentos enviados por Deus", sei lá, na guerra, por exemplo, levam com um balázio de um tanque e vão desta para melhor. Ou alguém que luta contra um cancro. Será que nessas alturas podemos dizer então que Deus é uma mãe panda? (Para quem não sabe, as mães panda gostam tanto dos filhos que, ao abraçarem-nos com tanta força, acabam por matá-los.) Por favor...pensemos a fundo nas questões e recusemos as frases cliché usadas com leviandade, mesmo que elas possam apresentar um fundo de verdade. Esta cena do filme "Beleza Colateral" ilustra um pouco do que eu quero dizer. O protagonista perdeu a filha e está a falar com a Morte. Não consegui encontrar com legendas em português, mas a parte que importa é esta: "Deus olhou para baixo e viu uma rosa tão bonita que decidiu colhê-la para tê-la só para si no céu (...) Mas sabes que mais..são só tretas intelectuais, porque ela não está aqui a segurar a minha mão". Escusado será dizer que recomendo em absoluto o filme.

Uma das passagens da Bíblia que pode eventualmente contribuir para estas ideias acerca de Deus é a do sacrifício de Isaac (Gn 22, 1-18). Naturalmente não vou dar a(s) resposta(s) definitivas acerca deste episódio, mas espero poder mostrar algumas novas perspectivas que contribuam. Permitam-me umas notas preliminares, que são válidas daqui para a frente nestes posts. Faço assim já uma entrada a pés juntos, para alguns; para outros, um corte perfeito. Espero não lesionar ninguém. Quando dizemos que a Bíblia é a Palavra de Deus, há uma diferença entre dizer que é inspirada por Deus e dizer que todas as palavras sem tirar nem pôr saíram da boca de Deus. A relevação de Deus, a inspiração/sensação/intuição, está sujeita à personalidade/comportamento/entendimento/cultura dos chamados escritores sagrados. Isto para não falar depois de todas as questões de tradução e por aí fora, porque senão nunca mais daqui saímos. Mas atenção, tal não obsta a que se tenha a Bíblia em consideração como sendo a Palavra de Deus. Aliás, se este entendimento fosse problema, não teríamos todo um mundo à volta da exegese bíblica, nem malucos como eu a fazer blogs deste género. Far-se-ia uma espécie de quod scriptum, scriptum e pronto.
Ninguém é obrigado a concordar com este entendimento da Bíblia, mas um entendimento literal da Bíblia em toda e qualquer palavra coloca-nos questões pertinentes (e bem tramadas, para quem diz que Deus é amor) no que toca à natureza de Deus e do conceito de bem e de mal segundo o seu juízo. Num outro post, sobre o bem e o mal, abordarei estes problemas.

Vamos ao texto em questão (vou tentar apresentar algumas possíveis interpretações, algumas até contraditórias entre si). Nele, parece que Deus exige a morte do filho de Abraão. Pouco importa que fosse só um teste e que Deus não quisesse a morte de Isaac. Tal situação já seria inflingir dor psicológica em Abraão, e não estou a ver Deus ali a esfregar as mãos maquiavelicamente ao observar o dilema moral em que o ser humano se encontraria. Mas vamos ao texto.
Efectivamente, é-nos dito que Deus chamou Abraão para o testar, ou pôr à prova. Ora, nós dizemos que Deus é omnisciente, e quando se testa alguém, é porque não se sabe o resultado final. Mas se Deus conhece o coração de Abraão, não precisa de testar Abraão. Precisa é de lhe mostrar alguma coisa! Quase que se poderia ler "Deus, para fazer Abraão compreender (...)". Assim, o propósito de Deus seria mais o de revelar alguma coisa acerca de si e de Abraão a este último. Esta visão não retira o problema da dor psicológica sentida por Abraão, mas penso que pode mudar alguma coisa acerca da ideia de Deus. Uma conclusão importante a retirar é a de que Deus NÃO QUER o sofrimento humano, mesmo quando assim nos parece. Numa outra perspectiva, se pensarmos num teste formativo, o objectivo deste é ajudar no percurso de aprendizagem do aluno. No entanto, este teste gera inevitavelmente ansiedade no aluno, mesmo que não seja essa a intenção do professor. Não seremos nós, seres humanos, a percepcionar a situação como um teste, e não Deus?

Relembrando a entrada a pés juntos de há pouco, até que ponto é que Abraão percebeu bem o pedido de Deus? É que Abraão vivia numa região onde os outros deuses é que exigiam sacrifícios humanos. Deus, ao pedir-lhe que oferecesse o seu filho, pode ter levado Abraão a ter pensado com naturalidade que matar o filho era o tipo de sacrifício que Deus queria. Por outro lado, pode ter pensado "mas afinal este Deus é como o deus dos cananeus e quer isto? É curioso que, uns capítulos antes, Abraão põe-se a falar com Deus por causa da destruição de Sodoma. Nisto, argumenta com Deus para que este tenha em atenção a "verdadeira" justiça. E põe-se por ali a regatear com o próprio Deus, como se tivesse alguma palavra a dizer a Deus no que toca à noção de bem e de justiça, como se pudesse ensinar o próprio Deus. No entanto, quando se trata de matar o próprio filho, não consta do texto que tivesse argumentado.
Além do mais, se o entendimento de uma oferta a Deus era o de oferecer em holocausto, ou imolar, esse entendimento muda até chegarmos à percepção de que há uma diferença entre o sacrifício que Deus quer, e o sacrifício que nos achamos que Deus quer. Em todo o caso, Abraão lá partiu como se fosse para matar o filho. No momento de imolar o filho, aparece o anjo que lhe diz: "não estendas a tua mão sobre o rapaz, e não lhe faças nada, pois agora sei que temes a Deus". Seja o anjo uma criatura com asas, um mensageiro (um mensageiro traz uma mensagem) de Deus, visível ou invisível, o que é certo é que Abraão percebeu que não tinha de matar o filho. Aliás, é provável que durante o caminho Abraão tivesse pelo menos essa esperança, quando diz aos criados: "eu e o meu filho iremos até ali, e depois de adorar, voltaremos para vós". Por um lado queria ser fiel a Deus, por outro lado acreditar ser possível ficar com o seu filho.

Li um artigo, de origem judaica, com outra interpretação interessante. A ideia é a de que o teste de Deus fosse ao pensamento crítico de Abraão. Deus quereria que Abraão pudesse confrontar a sua noção de bem e de mal com a noção de bem e de mal de acordo com Deus (ora pelo que ia descobrindo acerca de Deus, ora pela ideia de Deus que tinha por influência das outras religiões). Se há coisa que observamos na história da salvação, é que Deus constrói com as imperfeições e limitações dos seres humanos. Poderia dizer "vocês não percebem nada disto, eu não quero cá sacrifícios de animais nem tretas do género. Orientem-se", mas em vez disso, aceita o desenvolvimento da moral do ser humano progressivamente, do mesmo modo que se vai progressivamente relevando. Seja o resultado do teste o esperado ou o inesperado, Deus diz a Abraão que o vai abençoar e à sua descendência, como aliás já havia prometido, porque Abraão "obedeceu à sua voz" e "não negou o seu filho", o que parece indicar que o teste de Deus era "a sério". Por outro lado, é interessante confrontar as palavras do anjo "agora sei que temes a Deus", com as palavras de S, João: "No amor não há temor; pelo contrário, o perfeito amor lança fora o temor; de facto, o temor pressupõe castigo, e quem teme não é perfeito no amor." Sim, não precisam de me dizer, temor e medo (como se traduz por vezes a segunda passagem) não são a mesma coisa, mas nem por isso estão assim tão distantes. Até que ponto podemos dizer que Abraão tinha respeito por Deus, mas Deus queria algo mais?

Resta-me um paralelismo final: Deus não deixa que Abraão sacrifice Isaac. Não quer que um pai sacrifice um filho, pois sabe bem o tipo de ligação existente entre os dois. Mais à frente na "história", aquilo que não exigiu ao ser humano que fizesse "por ele" (salvo seja), fará ele por nós. É o Deus Pai que envia o Deus Filho aos seres humanos. Não para se deter na morte, mas para viver até à morte, e para lá dela.

Isaac pode não ter sido sacrificado fisicamente, mas ainda assim foi oferecido a Deus. Não quererá Deus, em vez de nos testar, ensinar-nos e dar-nos a oportunidade de o procurarmos, o que implica também articularmos a noção de Deus e a noção de bem?

João Barreiro

Sem comentários:

Enviar um comentário